Os autarcas podem ficar impunes, escapando às penas do Tribunal de Contas e à obrigação de devolver dinheiro desviado e pagamentos ilegais, já a partir do próximo ano. É o que prevê a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2011 entregue no parlamento a semana passada. O Tribunal de Contas (TC), que vê com grande apreensão a possibilidade de a norma ser aprovada, respondeu ao i com uma declaração do seu director-geral, que, apesar da diplomacia e do evidente respeito pela separação de poderes, critica frontalmente a proposta do governo.
A alteração é feita através de uma complexa teia jurídica, com remissões que põem em vigor para os autarcas um decreto de António de Oliveira Salazar, de 1933 - que foi ressuscitado e se aplica, ainda hoje, aos membros do governo.
Trata-se do artigo 149.o da proposta de Orçamento, que determina uma "pequena" alteração à lei que rege a organização e processo do Tribunal de Contas. Simplificando, a norma estabelece que os autarcas passam a ter responsabilidade financeira por pagamentos ilegais apenas quando as suas decisões tenham sido tomadas contrariando o parecer dos serviços ou não os ouvindo.
A mudança proposta para o artigo 61.o da lei do TC é muito simples, limitando-se a acrescentar seis palavras ao seu texto, a expressão: "e dos titulares de órgãos autárquicos". Passa assim a ler-se: "A responsabilidade prevista no número anterior recai sobre os membros do governo e os titulares de órgãos autárquicos nos termos e condições fixadas para a responsabilidade civil e criminal do artigo 36.o do Decreto n.o 22 257, de 25 de Fevereiro de 1933."
A declaração ao i do TC, que fiscaliza as contas do Estado, julgando os processos, aplicando multas aos autarcas e forçando-os a repor os montantes correspondentes, não permite dúvidas de que a norma dá lugar a uma "diluição de responsabilidades relativamente a quem tem poderes de gestão autárquica e o consequente dever de prestação de contas [...]" O próprio director-geral do TC considera, na mesma declaração, que a situação dos autarcas não é comparável com a dos membros do governo. Um especialista ouvido pelo i afirma mesmo: "Esta nova norma não faz qualquer sentido porque dá um tratamento igual a situações diferentes." E mais, "não distingue municípios e freguesias. Ora há 4260 freguesias e muitas delas não têm sequer pessoal", explica o mesmo jurista.
Equiparação impossível Na verdade, os membros do governo não autorizam pagamentos e não são responsáveis pela prestação de contas, que compete aos secretários-gerais dos ministérios. Pelo contrário, os eleitos locais autorizam despesas e pagamentos e são eles próprios que têm de prestar contas. Além de que não existe qualquer outro mecanismo de fiscalização e de responsabilização dos autarcas.
Mesmo relativamente aos membros do governo, a norma de Salazar está hoje manifestamente desajustada. "Fazia sentido quando a administração pública era profissional e obedecia apenas à lei. Não faz qualquer sentido hoje, em que os serviços estão cheios de boys que não são profissionais, não conhecem a lei nem são responsabilizados. E que fazem apenas o que lhes manda fazer quem os nomeou", diz uma fonte judicial. Hoje ninguém sabe sequer o que são as "estações competentes" que os ministros têm de ouvir. E os autarcas também, caso a norma seja aprovada.
Depois de 36 anos de democracia há 2 constantes. 1- O Salazar tem culpa de tudo. 2- Quando convém, vai-se buscar o Salazar para limpar as fraldas, como é este caso.
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